O choque entre evoluído e involuído, entre Evangelho e mundo, é fenômeno de alcance biológico, ao qual ninguém pode escapar, tanto menos uma religião que se fundamenta no Evangelho e que se propõe implantá-lo no mundo.
Aqui não se combate nem se condena nenhum grupo humano em particular: prefere-se observar o que o homem costuma fazer. Verifica-se que tudo permanece o mesmo, pois o homem em geral faz as mesmas coisas em todos os grupos. É inútil, portanto, escandalizar-se do que se faz nas casas alheias, quando os mesmos homens fazem, em todas as casas, mais ou menos as mesmas coisas. Como pretender, num mundo assim, um comportamento de evoluídos?
Como esperar que possa surgir uma organização de santos, só porque são santos o fundador e o programa? A perfeição para o homem é um estado a ser atingido no futuro, e não uma condição já atingida no passado. Toda a massa humana está sujeita ao mesmo processo de evolução, e a maioria está agrupada em redor de certo nível desta, do qual esta procurando lentamente subir para outro mais alto. Imensos e penosos movimentos biológicos que comprometem todos os aspectos da vida humana em nosso planeta. Dentro dessa massa enorme, só pouquíssimos indivíduos se diferenciam, rara exceção que não pode pesar nos movimentos da vida. Governantes e governados, juizes e julgados, senhores e servos, acusadores e acusados, todos pertencem mais ou menos ao mesmo grau de evolução que, para todos, se vai deslocando com o tempo.
Em seus dois mil anos, a vida da Igreja seguiu, no mesmo passo de todas as outras instituições humanas, a evolução da vida, que é a grande estrada em que tudo caminha. A Igreja, como organismo terreno, acompanhou os tempos, aceitou o que eles ofereciam, e, na prática, permaneceu no plano humano, comportando-se como se comportavam os outros, no mesmo nível de evolução. Foi sempre o mesmo pensamento humano que, atravessada a civilização grega e romana, atravessa agora a civilização cristã, enriquecendo-se cada vez mais de elementos diversos. Esse pensamento, na Idade Média, foi preponderantemente cristão, mas agora não o é mais. Como se aquela forma mental tivesse esgotado a sua função, a mente do mundo pôs-se a pensar de outra maneira e, com a ciência, o pensamento humano caminhou para a frente por sua conta, deixando para trás a orientação cristã, que dantes estava na vanguarda. E se esta tiver que voltar, só será possível em outra forma totalmente diferente. Sem dúvida que, depois de séculos de positivismo científico e após os brilhantes resultados práticos atingidos, a fé, se tiver de voltar, só poderá fazê-lo com uma mentalidade que não será mais a do passado. Tudo evolui e nem sequer as religiões podem parar.
Assim o Cristianismo, emergindo do plano da força (religião mosaica do Deus rei dos exércitos, egoísta e vingativo) tornou-se religião da bondade. e do Amor (Evangelho universal), para tornar-se mais tarde a religião da inteligência e da liberdade (Cristianismo do futuro, em que os mistérios serão demonstrados, baseado não mais no medo das sanções, mas na livre adesão de quem compreendeu que a vantagem é obedecer). Nestes dois mil anos o princípio da bondade e do Amor lutou para substituir-se ao princípio da força e o impulso da evolução procurou elevar o homem, do plano da lei mosaica ao plano mais elevado da lei do Evangelho. Essa forma religiosa foi apenas uma expressão do fenômeno da ascensão da vida. A luta entre as duas fases de evolução foi dura e, ao menos até agora, não se pode dizer de maneira alguma que o Evangelho tenha vencido. Isto não é um julgamento, muito menos uma condenação, mas somente uma comprovação de fato. Dadas as condições do ambiente e um conjunto de fatos históricos, o Evangelho teve de permanecer, em grande parte, apenas como uma teoria. O primeiro impulso de Cristo teve de ser substituído, mediante adaptações sucessivas, por outro impulso totalmente humano, imposto pelas necessidades do contingente, pelo qual o princípio de autoridade e disciplina deteve a explosão do Amor evangélico.
Por isso não foi possível a emersão imediata, e todos ficaram no nível de todos. Nas lutas entre os dois princípios opostos, a necessidade prática de julgar e condenar levou vantagem sobre a necessidade ideal. que era de compreender e perdoar. Entrando numa ordem de idéias, não se pode mais sair dela, e sua concatenação lógica nos arrastará até ao fundo. Somos livres ao colocar as premissas, mas depois ficamos inexoravelmente ligados a elas. Assim, salvou-se a unidade e a integridade, mas estabeleceu-se uma insanável cisão entre bons e maus, entre julgadores e julgados, entre quem condena e quem é condenado. Recaímos no método humano, próprio das instituições terrenas baseadas na força, o método da lei que pune, que tende, pela autoridade, à imposição e coação com sanções, embora, neste caso, espirituais. Isto se explica, sem dúvida, como dissemos, pela natureza do ambiente terreno e da psicologia dominante em nosso mundo Mas isto não impede que as conseqüências lógicas desse fato não devam ser suportadas até ao âmago.
Foi assim que a psicologia do plano humano, aquela que o Evangelho queria refazer, se aninhou no centro da Igreja. Foi aceita e como que fixada na instituição a figura do malvado; foi reconhecido o mal como potência rival que ameaça a de Deus. Assim, por instinto de conservação num estado de integridade e pureza, o preceito evangélico que tende à aproximação do malvado para acabar em sua redenção e salvação, se inverteu num afastamento dele, para acabar na sua perdição eterna no inferno. Com o sistema do juiz e do castigo, uma classe social dominante poderá defender seus interesses e a sociedade afastar os elementos que a perturbam. Mas estamos sempre no plano humano da luta para a defesa da própria vida, luta entre juiz e julgado, na qual vence o mais forte. Isto não aproxima os dois termos, antes acentua as cisões e a inimizade. O sistema do juiz que condena está nos antípodas daquele que ama para remir. Assim o mal não é absorvido pela não-resistência, mas, ao eliminá-lo com o esmagamento, mais ele é excitado, reforçando a reação, induzindo a uma resposta adequada, no mesmo nível, no plano da força, com a rebeldia. Recaímos no sistema do mundo, no julgamento que divide e afasta, e não do Amor que aproxima e une.
Eis que na luta entre Evangelho e mundo, venceu o mundo e o Evangelho falhou à sua finalidade. Ficamos presos dentro de uma lógica desapiedada, que não nos permite saídas, detendo-nos no meio, mas que nos constrange a percorrê-la até o fim. Com o inferno e o paraíso, bons e maus se separam definitivamente, para sempre. A cisão triunfa, em lugar da união, e recebe sua eterna confirmação. Desta forma, Deus coloca a sua assinatura na sua falência. Restará sempre uma parte do universo em que Deus foi derrotado, em que reina o Seu inimigo, em que venceu e impera o ódio, em lugar do Amor. O inferno eterno representa a vitória dos métodos do mundo, baseados na punição, sobre os métodos do céu, baseados no Amor. Um castigo eterno que detém a evolução e exclui definitivamente a salvação, supremo fim do Evangelho; uma condição de imobilidade, num estado de dor, que não tem mais finalidade de bem, porque não educa mais, mas é só condenação pela condenação, inútil para a salvação. Admitir tudo isto poderá explicar-se como uma temporária necessidade, para que uma instituição seja respeitada, e portanto pudesse ter sobrevivido até hoje no feroz ambiente terrestre; mas, se for admitido como verdade definitiva, isto significa que, na Igreja, deve vencer a lei do mundo e não a do Evangelho.
Existe uma única solução, que oferece possibilidade de Salvação; uma solução que deveria ser escolhida por obra de inteligência, ou aceita espontaneamente das mãos da história, antes que esta seja constrangida a impô-la. Trata-se de fazer marcha-à-ré repudiando os métodos do mundo e seguindo plenamente os do Evangelho.
Do livro “Evolução e Evangelho” , capítulo 5